Cultura

Carlota Joaquina: rainha adúltera ou vítima de conspiração?

Historiador argentino defende em livro que imagem de infiel foi criada por adversários políticos
Pintura retratando a rainha Carlota Joaquina Foto: divulgação
Pintura retratando a rainha Carlota Joaquina Foto: divulgação

RIO — Adúltera, vagabunda, safada, infiel, ordinária e outros atributos bem menos nobres serviram para qualificar uma das personagens mais odiadas da história colonial brasileira: Dona Carlota Joaquina, a mulher de D. João VI. Um livro chega agora, 187 anos após a morte da rainha consorte, para propor uma outra imagem para a personagem. Escrito pelo historiador argentino Marsilio Cassotti, “Memórias de Carlota Joaquina, a amante do poder” (Planeta) aposta que a fama era intriga da oposição.

— É muito difícil provar com documentação que ela tenha tido amantes. Dona Carlota sofria uma campanha negativa do governo português e do governo inglês. Era inimiga da Inglaterra. Esses “amantes” foram lendas construídas por inimigos políticos para desprestigiá-la — diz Cassotti, também autor de “A biografia íntima de Leopoldina”.

Os relatos de casos extraconjugais, segundo o livro, teriam se espalhado depois que Carlota tramou um golpe contra D. João, a quem considerava despreparado para governar. Seu plano era internar o marido para assumir o seu lugar. Espalharam-se, então, boatos de que entre os amantes da rainha havia até mesmo um amigo do rei. Também foram comuns histórias de infidelidade envolvendo funcionários do Palácio de São Cristóvão (Quinta da Boa Vista), como um jardineiro.

— Dona Carlota era uma mulher de trato muito democrático, mas ao mesmo tempo muito classista. É muito difícil pensar que teria tido relações sexuais com pessoas que considerava inferiores, seja socialmente, seja racialmente. Portanto, penso mais que foi uma campanha negativa para combatê-la politicamente — diz o historiador.

“Dona Carlota sofria uma campanha negativa do governo português e do governo inglês. Era inimiga da Inglaterra. Esses 'amantes' foram lendas construídas por inimigos políticos para desprestigiá-la”

Marsilio Cassotti
Historiador argentino, autor do livro “Memórias de Carlota Joaquina, a amante do poder”

Carlota carregou, por exemplo, a suspeita de ser a mandante do assassinato de Dona Gertrudes Angélica Pedra Leão, mulher do comendador D. Fernando Carneiro Leão. Carlota era apontada como a amante do comendador e, por ciúme, teria encomendado o atentado.

— Organizou-se uma campanha para demonstrar que Carlota estava conspirando de novo contra seu marido e, como não se podia demonstrar que isso era real, a acusaram do crime. Na documentação da época, só aparecem os testemunhos de terceiros. Não há testemunhos diretos — avalia Cassotti.

Carlota era a filha primogênita do rei da Espanha, onde as mulheres, na falta do herdeiro varão, podem reinar. Bem cedo, tomou consciência que poderia assumir o trono. No entanto, seu avô tinha outros planos e a casou, aos 10 anos, com o herdeiro do trono de Portugal, D. João VI.

— Sua entrada na Corte de Lisboa foi bastante acidentada. Porque era uma espanhola e criticava a todos os portugueses. Não foi amada. E encontrou um marido que não correspondia a suas expectativas — opina o autor.

Depois de 187 anos de sua morte, finalmente apareceu alguém para falar bem de uma das personagens mais odiadas da história do Brasil: Carlota Joaquina, a mulher de D. João VI, que ganhou fama de adúltera. O escritor argentino Marsilio Cassotti diz que houve uma campanha sórdida dos governo português e inglês para desmoralizar a rainha, ansiosa pelo poder. Edição e imagens: Elcio Braga
Depois de 187 anos de sua morte, finalmente apareceu alguém para falar bem de uma das personagens mais odiadas da história do Brasil: Carlota Joaquina, a mulher de D. João VI, que ganhou fama de adúltera. O escritor argentino Marsilio Cassotti diz que houve uma campanha sórdida dos governo português e inglês para desmoralizar a rainha, ansiosa pelo poder. Edição e imagens: Elcio Braga

Com a invasão de Napoleão a Portugal, a família real fugiu para o Brasil. No Rio, Dona Carlota se sentia isolada. Como D. João não a deixava ter poder, planejou um golpe de Estado, que visava a recolher D. João a um manicômio. Mas o rei percebeu a tempo.

— A partir desse momento, se produz o que os documentos chamam de separação de camas. Não tiveram mais relações sexuais. Começaram a nascer lendas sobre os amantes de Carlota, que nos documentos não aparecem de nenhuma maneira — diz Cassotti.

Humilhada na Corte, Carlota passou a viver reclusa, por dez anos, em uma chácara, em Botafogo. A derrota de Napoleão e as pressões em Portugal fizeram, porém, a família real retornar à Europa. Após a morte de D.João, enfim, na versão de Cassotti, Carlota conseguiria, por um breve momento, o que tanto queria:

— Pela primeira vez, Dona Carlota adquire o poder em Portugal porque, de toda a família Bragança, era ela, naquele momento, a mais preparada por astúcia para conseguir o poder. Ela não podia reinar, porque em Portugal rainhas consortes não podem ter o poder. Ela se alia a D. Miguel (irmão e inimigo de D. Pedro) , para torná-lo rei de Portugal. E ela governa através do filho preferido. Consegue seu sonho, que dura pouco porque ela morre.

OS ÚLTIMOS DIAS DE CARLOTA

O livro traz detalhes da sofrida morte de Carlota. Na versão de Cassotti, a rainha consorte padecia de duas graves doenças, nos pulmões e nos ossos. Nos últimos dias de vida, estaria praticamente imobilizada. Quando tentavam levantá-la, sentia dores horríveis.

Cassotti calcula ter levado três anos e meio para pesquisar e escrever as duas edições, a portuguesa e a brasileira. Uma das principais fontes do historiador argentino foram os escritos deixados pelo secretário particular de Dona Carlota.

— É um manuscrito que foi publicado em Bordeaux, França, em 1830. Fazia um ano que Dona Carlota havia morrido. O documento praticamente já havia perdido valor porque não servia para chantagem. Então, permaneceu sem ser divulgado e, agora, com a pertinência do período brasileiro de Carlota, foi reabilitado — explica.

O escritor admira a ambição de Carlota pelo poder. Enxerga, porém, dois defeitos cruciais: um grande orgulho que chegaria à soberba de se considerar superior ao resto da humanidade; e, ao mesmo tempo, uma falta de preparo cultural.

— Os brasileiros veem Carlota como uma pessoa que não os queria. Demonstro que, apesar de não ter simpatia pelo Brasil, foram os anos no país que a amadureceram. Quando ainda vivia em Portugal, era jovem, ingênua, falava demasiadamente. No entanto, os mais de dez anos que passou no Brasil, com muitas experiências negativas, amadureceram sua inteligência e caráter. O período lhe serviu para se dar conta de que, se queria o poder, teria de ser mais astuta e prudente, falar menos, ser mais hipócrita — assinala o escritor.